A Pele que Habito

Chocante. É com essa palavra que ouso definir em primeiro instante a nova película do aclamado (e ousado) diretor espanhol Pedro Almódovar.

A Pele que Habito é um filme que intriga, choca e perturba o espectador. Com uma trama cuidadosamente arquitetada, lida com diversos elementos sombrios da psique humana, com um foco em terror, desespero e ansiedade.

O diretor Pedro Almódovar é um gênio brilhante do cinema europeu e não teme em explorar a sexualidade através de cenas e da psique de suas personagens, o que não raras vezes tornam suas obras polêmicas e acidentalmente comentadas. Um dos pontos mais marcantes da obra desse diretor é a forma como aborda e lapida o conceito de alma feminina existente tanto em mulheres (e principalmente) em homens. A alma e o desejo físico e mental existente na mente de suas personagens masculinas que possibilita o conceito de transformação de dentro para fora.

Porém, em A Pele que Habito, Almódovar trabalha com um conceito inteiramente diferente de seus trabalhos anteriores. O conceito existe, mas é totalmente inovador, tornando essa ousadia do diretor algo totalmente estonteante e perturbador. Muito perturbador.

A história trata de Roberto (Antonio Bandeiras mostrando sua volta ao cinema europeu de modo excelente) um conhecido e renomado cirurgião plástico que desenvolveu uma espécie de pele sintética semelhante a humana, porém mais resistente. Mas, para chegar ao resultado, sua equipe sabe que ele usou de métodos de teste pouco ortodoxos.

Roberto vive afastado em uma grande mansão no interior, tendo como empregado, unicamente Angela  (Marina Paredes) em uma excelente atuação, que ao longo da história se revela uma grande personagem. Roberto é um homem reservado e compenetrado em seus estudos desde as terríveis desgraças e consequentemente mortes de esposa e filha.

Porém, em um quarto inteiramente filmado e alheio á estímulos de fora, exceto pela televisão com canais previamente selecionados e revistas, ele mantém, cativa, uma bela mulher. Misteriosa, ela passa os dias em um auto-controle admirável no cubículo, vivendo em ler, ver TV, praticar yoga e escrever nas paredes. Passa todo o tempo nua, usando somente uma espécie de tecido que imita a pele.

Seu nome é Vera (com uma atuação incrível de Elena Anaya). Sua origem e quem realmente é são mantidos em segredo ao decorrer do filme, em meio a determinados acontecimentos, com as respostas sendo reveladas apenas na segunda parte do filme.

A relação de Roberto com a jovem mulher é estranha, ora nos parece um voyeurismo doentio, ora um experimento de testes no qual Vera é a cobaia, ora a doentia obsessão de Roberto em torná-la a imagem de sua falecida esposa, o envolvimento da empregada Angela que aceita assistir e compactuar com tudo aquilo... e o ponto mais intrigante: quem realmente é Vera? Qual razão de estar ali, aceitando aquela prisão passivamente? Que está constantemente prestes a entrar no desespero (ou certamente mergulhada nele ) e mesmo assim permanece naquele lugar escondido de tudo e todos, constantemente estudada por seu captor que mesmo na insensatez da situação demonstra cuidado em mantê-la bem.

Fazer uma resenha mais completa sobre A Pele que Habito sem contar partes cruciais, que não sejam spoilers é praticamente impossível. Almódovar desenvolve uma obra tal que você realmente a acompanha e vivencia. Na primeira parte vemos pormenores e acontecimentos através de Vera. E quando após a aceitação de “cria e criador”, somos transportados para o passado, e, em um grande flash-back com momentos cruciais, temos o quebra-cabeça do passado de Roberto até o surgimento de Vera. Entre a insanidade da filha de Roberto ao presenciar a morte da mãe e a violência o qual foi submetida anos depois, temos também a existência do jovem Vicente, cujo papel é a “obra-prima” do filme de Almódovar.

Em A Pele que Habito, temos um emaranhado de sentimentos psicologicamente perturbados e imersos no desespero. Na empregada Angela vemos o amor de mãe passando dos limites do certo e errado, muito embora justificável a certo ponto.

Roberto poderia justificar o seu “eu” atual como consequência do passado traumático culminado por grandes perdas. Mas até que ponto vai a dor e a vingança? Em que momento esses dois sentimentos misturam-se a psicopatia e obsessão por ter Vera inteiramente ao seu controle? A semelhança de Vera com a falecida esposa o faz desejar e amar aquela criatura responsável também por sua desgraça e desejo obsessivo de vingança e posteriormente, luxúria. Talvez Roberto fosse assim desde o início e as desgraças, bem como chance de vingança, foram o gatilho para desencadear tudo que já estava guardado nos confins de sua mente.

E ainda há Vera. Falar sobre ela seria entregar o filme, justamente ela que é a personagem mais intrigante e psicologicamente instável, com seus traumas acumulando-se de forma tal que ao descobrirmos chegamos a conclusão de que ela é a criatura mais complexa do filme.

Para aqueles que já conhecem as obras de Almódovar, este filme é algo diferente do que o diretor já havia abordado. Foi chocante tanto passa os fãs quanto para o público e a crítica. A ousadia torna o filme perturbador e surpreendente.

Se você se tornasse um outro eu, o que faria, o que sentiria? Essas e todas as outras questões que fazemos ao nos colocarmos na situação de Vera é carregada todo o tempo, principalmente quando o passado é contado. E chegamos à mesma conclusão que ela e seu eterno conflito.

A Pele que Habito não é um filme simples. É um filme chocante, uma realidade com toque de ficção que nos faz não apenas pensar, mas admitir nossos preconceitos e reavaliar certos pré-conceitos. A insanidade dos personagens nos perturba principalmente quando acompanhamos o processo de transformação (literalmente) de um deles em meio a própria relutância.

Em meio ao conflito há o amor doentio e o ódio irracional – este último fruto da única saída para sobrevivência. A imagem de um corpo feminino tendo uma casa no lugar cabeça que Vera desenha em uma das paredes e é praticamente focalizada uma vez nos faz compreender a realidade de sua situação após desvendarmos seu passado. Aliás a cena mais chocante é a conclusão do flash-back acerca do surgimento de Vera, curiosamente estampado na capa do DVD.

Certamente um dos melhores filmes de 2011, A Pele que Habito mostra com lucidez a capacidade ousada de Almódovar, na qual ele articula um roteiro tenso e perturbador do começo ao fim. Em certos momentos nos perturbamos, fazendo nossa mente pensar como o próprio personagem e na situação em que se encontra. É original e isento de clichês, até mesmo para as tendências do diretor.

Mas antes que você queira assistir ao filme, é preciso ter em mente que A Pele que Habito não é um filme que agrade o grande público. É realmente cru, chocante e perturbador, ao tratar de uma vingança patológica, a transformação forçada e o doentio relacionamento que deixa os mais puritanos e moralistas indignados. Veja apenas se possuir mente aberta, se aprecia o cinema artístico sem dogmas, se compreende Almódovar e, principalmente se aprecia uma história perturbadoramente chocante.

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