Afinal, eu sou um mordomo e tanto.
Kuroshitsuji é um dos animes que, estética e visualmente impressiona. Mantendo um belíssimo traço e uma animação caprichosa, os personagens são bem expressivos (uma qualidade das obras denominadas shoujo) e o estilo das roupas é simplesmente fenomenal (só perdendo, talvez, para o ilustríssimo mangá de Trinity Blood). Isso advém do fato de que a história de Kuroshitsuji ser ambientada na Londres vitoriana (por volta de 1860 - 1880). Como se não bastasse, a obra trata de demônios e pactos, o que certamente atraiu fãs.
Talvez o único ponto negativo de Kuroshitsuji seja o fato de ser uma obra YAOI. Yaoi é um gênero muito popular entre as mulheres, embora trate do romance homossexual entre dois homens (não me pergunte a razão disso fazer tanto sucesso entre o público feminino, nem os psicólogos sabem). O problema aumenta porque os personagens masculinos são absurdamente belos (o demõnio Sebastian é, literalmente, uma tentação).
Mas não me aterei no yaoi neste artigo. Pois Kuroshitsuji embora pertença ao gênero, não foca nisso constantemente e de forma melodramática. Assim como Tokyo Babylon, a obra possui enrtedo e não é um romance. Na verdade só pessoas com senso crítico notarão as referências de duplo sentido (isso pelo menos na primeira fase). Portanto, se você aprecia histórias de anjos/demônios e mistérios sobrenaturais com um humor divertido e belo visual, feche os olhos para o yaoi e aproveite.
O protagonista é o jovem aristocrata Ciel Phantomhive: sério e recluso, embora tenha apenas 13 anos é dono da maior empresa de brinquedos do mundo: as indústrias Phantomhive.
Após perder os pais em um misterioso incêndio, Ciel, consumido pela vingança, aceitou fazer o pacto com o demônio. E a prova do "contrato" é o símbolo tatuado em sua íris (a qual ele esconde com um tapa-olho).
O tal demônio do contrato atende pelo nome (certamente falso) de Sebastian Michaelis. Devido ao pacto firmado com o jovem Ciel, o belíssimo Sebastian torna-se seu mordomo. Embora seja um demônio deveras poderoso, Sebastian cumpre rigorosamente a regra do contrato, tendo que servir e acompanhar seu mestre como qualquer mordomo. Sebastian é talentoso e incrivelmente perfeito em qualquer coisa que se habilite fazer.
A pergunta intrigante entre a relação de ambos é relacionada ao pacto. Ciel o fez para que pudesse obter sua vingança e Sebastian aceitou auxiliá-lo para obter algo em troca. Esse "algo" é nada menos do que a alma do contratante. Quando Ciel concluir sua vingança ele tem plena consciência de que Sebastian devorará sua alma.
Apesar disso, Ciel e Sebastian levam uma vida normal, com o garoto administrando a fortuna dos Phantomhive e o mordomo-demônio cuidando dos afazeres diários da profissão; preparando o chá da tarde, administrando a agenda do patrão, cumprindo serviços, acompanhando seu mestre em reuniões sociais e dando ordens aos demais empregados (que são bizarramente atrapalhados). Entretanto, além de cuidar das finanças da família, Ciel é o famoso "cão de guarda" da rainha e, como reza a tradição, tem o dever de resolver certos casos misteriosos em Londres.
O ponto alto de Kuroshitsuji reside aqui. Os casos apresentados seguem todos uma referência á obras renomadas da literatura inglesa. Como o caso em que as personagens vão á um vilarejo retrógado onde existe um cão-fantasma - talvez uma homenagem ao Cão dos Baskervilles, de sir Arthur Conan Doyle. Aliás, a presença da aura de Sherlock Holmes está presente na ambientação e forma como alguns mistérios são apresentados e, durante uma festa na corte, o personagem indiano Ramma surge trajado com a clássica roupa axadrezada de detetive.
A diversidade de personagens apresentados durante os fatos comprovados historicamente são outro destaque. A chegada do príncipe indiano Ramma e seu fiel lacaio mostram a revolta contida dos imigrantes en Londres. Assim como o episódio em que Ciel veste-se de mulher (nota para a engraçada e subliminar cena de colocação do corset) para investigar o tráfico de humanos por um respeitado burguês. Claro que a melhor referência histórica se dá através do divertido chinês Lao (sempre agarrado á tentadora Ranmao). Passando-se de desentendido, eke comanda o consumo de ópio nos subterrâneos da cidade. "Eu vendo sonhos ás pessoas" é o que ele diz em meio á vários viciados espalhados pelo salão de consumo da droga em narguilés.
Porém, nenhum desses casos surpreende mais do que a delirante e deliciosa versão que a autora dá ao caso de Jack, o Estripador. O primeiro serial killer documentado da história é um dos melhores momentos da série. É nesse interim que conhecemos a tia de Ciel, a memorável Madame Red. Em seus bleos trajes rubros a personagem fixou uma presença tão forte que, embora tenha aparecido em poucos episódios, possui vasta quantidade de cosplayers.Ainda no caso de Jack, conhecemos o shinigami Grell Sutcliff. Insano, perigoso e extravagante, sua paixonite fanática por Sebastian arranca risadas e o fato de sempre acabar se dando mal por conta desse "amor", nos simpatizamos comn sua pessoa. Como todo Deus da Morte, Grell não deve ser subestimado e, para cortar a alma de suas vítimas, ele usa não uma foice e sim um grande serra elétrica.
Mas, quando Ciel começa a duvidar das verdadeiras intenções da Rainha da Inglaterra, é que a coisa se complica. E, á medida que vamos descobrindo os mistérios, vamos conhecendo mais sobre Sebastian que, atrás de um mordomo perfeito reside um assassino frio.
Onde reside um demônio simpático e "bom", também há um anjo. E talvez a presença desse único anjo ilustre uma das questões mais interessantes de Kuroshitsuji. O anjo, em sua própria revelação, pode tanto ser homem quanto mulher (a teoria dos anjos sem sexo). E chegamos á conclusão com base em suas intenções, que fazer pacto com um demõnio é ruim, mas fazer pacto com um anjo pode ser muito pior.
O final da primeira fase é simplesmente excelente. A Londres em chamas (um fato que realmente ocorreu na época) e a batalha final é contudente. O epílogo então...talvez um dos finais mais místicos e inspiradores dos animes, coberto com uma penetrante trilha sonora.
Kuroshitsuji, em minha opinião, acabou na primeira fase. Mas, diante do sucesso da obra (e certamente pressão de fãs alienadas por yaoi), a autora deu prosseguimento á história.
A segunda fase possui 12 episódios e, embora os cenários e movimentação dos personagens seja primoroso, o enredo decepciona por conter cenas e diálogos de yaoi em demasia. Os mistérios e complexidades presentes na primeira fase são quase inexistentes na segunda. A idéia de outra pessoa fazer pacto com o demônio e se apaixonar por ele sem ser retribuído é interessante e nesse ponto foi bem elaborado. Porém ,o fato de Sebastian e Claude (o outro mordomo demoníaco) ficarem lutando por Ciel é apelativo demais. Sem contar que a fragilidade sentimental de Sebastian não combina com o seu "eu" da primeira fase.
O foco na segunda parte é quase inteiramente de Alois Trancy, um garoto parecido com Ciel, só que afetado e insano. Homossexual assumido Alois, á despeito da aparência, é cruel e emocionalmente instável que agride verbal e fisicamente sua passiva empregada Hannah quando Claude não lhe obedece da maneira que o garoto deseja. Invejando Ciel, Alois começa a fazer tudo para eliminá-lo.
Talvez o ponto realmente interessante seja o passado de Alois. Por uma cruel ironia do destino, Alois tem todos seus desejos realizados e paga um alto preço por eles. Sozinho, torna-se escravo sexual de um velho e rico pedófilo e os abusos ilustram a razão do garoto fazer o pacto com o demônio. Só que, por mais que ele deseje, Cluade jamais sentirá por ele o que Sebastian sente por Ciel. E a inveja de Alois perante essa verdade literalmente o faz rastejar aos pés do demônio em prol de atenção.
O final da segunda fase deixa muito a desejar e para aqueles que apreciam uma trama elaborada, concluem que a história deveria ter terminado na primeira fase, com seu desfecho aberto e subtendido: a última cena dessa parte ao som da melancólica Si Deus me Reliquint seguida pelos créditos da viciante canção Lacrimosa, é sublime.
Embora o anime tenha terminado, o mangá continua, tendo no momento 10 volumes não publicados no Brasil, criado pela autora: Yana Toboso. O sucesso de Kuroshitsuji rendeu uma boa quantidade de produtos direcionados ao público otaku e entre os fãs Sebastian é um símbolo sexual de animes e mordomo dos sonhos para qualquer mulher. E as roupas elegantes da época vitoriana inspiram excelentes cosplayers ocidentais.
Enfim, se você aprecia animes de qualidade que mescla ocultismo, mistério e comédia, Kuroshitsuji é recomendado. Como dito anteriormente, se fechar os olhos para o yaoi é possível apreciar a obra sem problemas (nesse caso recomendo que veja apenas a primeira fase). Pois Kuroshitsuji é interessante. Mesmo.
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